A dor pela infertilidade

            “Você só vai saber o que é amor de verdade quando tiver um filho”, “Ser mãe é a melhor coisa do mundo”. Frases ditas sem a intenção de magoar e que até soam doces no contexto comum, mas que podem doer muito quando ecoam o profundo vazio que a mulher infértil sente.

            Em um determinado momento o casal toma a decisão. É agora, estamos prontos para ser pais. E iniciam-se as tentativas. E vem a menstruação, também conhecida como “a monstra” em fóruns de internet. Vamos lá, ânimo, faz pouco tempo que “liberamos”, em geral não acontece de primeira. E os meses vão se passando, ginecologista dizendo que tem que ter relações sexuais em determinada frequência nos dias férteis e para ter calma, que só se investiga depois de 12 meses de insucesso. Você conversa com suas amigas e ouve que não demorou tanto para as outras. Mas vamos lá, deve haver um motivo para terem feito um protocolo de iniciar investigação apenas após 1 ano. E lá vem a monstra, mês após mês. E o coração fica apertado a cada vez que não acontece. As relações sexuais vão se tornando um fardo entre o casal, a naturalidade vai embora e vem a sensação de obrigação, mesmo cansados ou brigados, vamos fazer a nossa parte, “vai que pulamos hoje e seria justamente o dia em que daria certo?”. E nada.

            Completos os 12 meses de tentativas, chegou o momento da investigação. Para o homem é mais fácil, apenas um espermograma (embora muitos se sintam extremamente desconfortáveis com esse exame). Para a mulher exames mais invasivos, alguns dolorosos. Mas vale tudo para ter o sonho realizado. E dias depois vem o diagnóstico (ou a falta dele, nos casos chamados “idiopáticos”, ou seja, sem explicação). Muito choro, medo, “será que não vai acontecer para mim?”. E vem o primeiro luto, o da sua identidade  como mulher, geradora de vida. Mas vamos lá, você já ouviu tantas histórias de casais inférteis que engravidaram após o tratamento, vai dar certo.

            Procura por um médico que trate infertilidade, avaliação da possibilidade financeira de se fazer um tratamento (os custos são muito elevados), pensar quando será melhor começar, já que vai ser necessário dispender de um bom tempo para ir à clínica várias vezes por ciclo para ver se os folículos estão crescendo após injeções diárias de hormônios e depois para a coleta e fecundação, no caso de fertilização in vitro (alguns casais começam com um procedimento menos complexo, a inseminação artificial, em que se estimula a ovulação em geral com comprimidos por via oral e depois se injeta o esperma do homem dentro do útero, de maneira a facilitar a fecundação). Hormônios em ebulição, nervos à flor da pele, mas a vida continua correndo normal lá fora, a despeito da sua expectativa e do seu coração estar totalmente voltado para o tratamento. Quando você está chegando nesse mundo, fica feliz da vida quando vê alguns folículos no começo da indução, mas vai descobrindo que não é tão fácil assim. Esses folículos tem que responder à indução, crescer e chegar a um ponto de maturação em que possam ser coletados e fertilizados com maior chance de sucesso. E você vai perdendo alguns soldados no campo de batalha. E pode chegar ao final da guerra com uns poucos e combalidos lutadores, caso o seu problema seja baixa resposta ovariana. Outras chegam com vários óvulos ao fim do processo, mas eles ainda precisam ser fertilizados e se desenvolverem para se tornar embriões saudáveis (que inclusive são classificados de acordo com sua qualidade, incrível o entendimento que passamos a ter sobre a reprodução humana). E lá se vão mais soldados e mais esperança embora. Os problemas que podem acontecer são variados, poucos óvulos, poucos espermatozoides, óvulos de má qualidade, embriões de má qualidade, embriões que apesar de boa qualidade não se fixam no útero ou ainda se fixam mas não se desenvolvem, entre outros. E você vai saindo do seu estado de ignorância bem-vinda para um estado de compreensão dolorosa do processo. Começa a pensar: “mas se é tão difícil chegar com um embrião que grude no seu útero no fim do processo, como é que tem tantos bebês nesse mundo?”. E lá vai você, se sentindo cada vez mais uma aberração, diferente das outras mulheres (particularmente doloroso pensar que tantas mulheres engravidam várias vezes e largam seus filhos por aí e você não consegue nem engravidar de um bebê, tendo tanto amor para dar).

            Nesse meio tempo parece que o mundo ao seu redor vai ficando povoado de mulheres grávidas. “Será que havia tantas mulheres grávidas assim no mundo ou eu é que estou olhando para cada uma delas agora?”. E suas amigas engravidam, até aquela que havia dito que não pensava em ter filhos anos atrás. E você fica feliz por elas, mas é inegável que a cada novo bebê em fabricação em uma barriga alheia você sinta ainda mais o seu vazio. E tem aquelas com quem você dividia a sua dor, porque elas também tiveram dificuldade para engravidar. Era bom, você se sentia isolada de grande parte das pessoas, mas ainda havia alguns seres nesse mundo que falavam a mesma língua que você. Vocês riam juntas do quanto o mundo parecia feito de barrigas férteis e choravam juntas suas desgraças. Mas depois de algum tempo a sua amiga também engravidou e lá está você, firme e forte abraçada à sua infertilidade. Você vai à loja de enxoval inúmeras vezes comprar presentes para suas amigas e sempre olha que vai querer aquele conjunto para o seu bebê quando chegar a sua vez. Mas passa o ano, a coleção sai do catálogo e você perde a chance de ver seu bebê naquele lindo macacão. Lá pelas tantas você começa a passar pela loja olhando para o outro lado da rua, para não doer mais a cada nova coisa fofa que vê lá. Mas você continua tendo que engolir sua dor e entrar lá de tempos em tempos, porque evidentemente o mundo é feito de mulheres férteis e lá vai você de novo comprar mais um presente.

            Profissionalmente o tempo parou. “Queria mudar de emprego, mas não é legal engravidar logo que entra num novo emprego, né? Melhor esperar um pouco…” ou “eu queria tanto fazer mestrado, mas vou esperar, porque vai que eu engravido…”. E eu não engravido e a vida profissional fica empacada. Mas eu também não estou com cabeça para me envolver em novos projetos. O único projeto que eu queria estar envolvida agora é justamente o que eu não posso viver.

            E como fica o convívio com o mundo lá fora? Estranho, bem estranho. Sempre vem aquela tia, vizinha ou conhecido que faz a fatídica pergunta: “Quando você vai engravidar? Sua mãe quer tanto um neto!”. E você sorri educadamente, com uma vontade imensa de pronunciar um daqueles impropérios bem cabeludos que nunca pensou em usar. E os encontros com os amigos vão se tornando cada vez mais escassos porque, afinal de contas, o legal é fazer reunião de turma em hotel fazenda, assim as crianças (dos seus amigos) têm diversão garantida. Ou então os amigos se encontram nas festas de aniversário dos filhos, afinal ninguém mais tem tempo para comemorar o seu próprio aniversário. E você gosta tanto dos seus amigos que até se esforça e vai. Mas chega lá e fica sem amigos, porque todos eles estão correndo atrás dos filhos. Depois de um tempo começa a evitar essas festas e encontros e começa a ficar ainda mais isolada. É uma opção não ir, ninguém te excluiu, você mesmo se exclui, mas optar por ir acaba te causando ainda mais dor, de ver tudo o que você não pode ter. E aí vem mais um comentário clássico: “Você que tem sorte de não ter filhos, dá tanto trabalho!”. E novamente o sorriso educado e os impropérios que ficam presos na sua cabeça. E esse é mais um dos lutos: o social. Você fica afastado dos amigos e se sente muito só.

            Aonde podemos encontrar outros casos raros de insucesso que compartilhem a sua dor? Já sei: na internet! E lá vamos nós, quem sabe tem alguém lá do outro lado que te entende pelo lado de dentro, de quem vive isso? Procura, procura, procura. Alguns relatos, mas, a exemplo do mundo real, muitas vezes você vai vendo que conseguiram alcançar seu objetivo e são promovidas para o site de gestantes e mães.

            E nessa prosseguem os tratamentos. Para as que não tiveram sucesso vem a pergunta sem resposta certa: “quando parar?”. Essa pergunta massacra, porque você pensa que se tentasse mais uma vez podia dar certo. O médico não te ajuda muito com essa dúvida, é muito pessoal. O parceiro também fica numa encruzilhada, ele também tem suas dores, suas expectativas e vive a mesma dúvida. Ninguém vive esse momento do mesmo lugar, nem mesmo o companheiro, principalmente se ficou claro que a causa da infertilidade é masculina ou feminina. Isso acrescenta a dor de privar o outro de ter um filho. Dedos apontados, implícita ou explicitamente. E o “culpado” fica mal, mesmo quando o outro é compreensivo e tenta livrar o primeiro da culpa.

            E o casamento, como fica? Alguns parceiros não toleram o processo, a dor, o mau humor da parceira, o distanciamento sexual ou a incapacidade de gerarem uma prole. Alguns relacionamentos se desfazem, outros esfriam e alguns se tornam ainda mais fortes, afinal de contas, passar por uma crise dessa juntos não é para os fracos. É tudo muito intenso e discordâncias e mágoas podem facilmente se colocar entre os dois. A comunicação é fundamental, dizer como se sente, dizer o que espera do outro.

            Mas voltando à questão mais difícil de todas, o quando parar. Quando a limitação é financeira, a possibilidade de se conseguir atendimento pelo SUS é improvável, já que há longas filas de espera e critérios para admissão de casais mais estritos do que na rede privada. Alguns buscam empréstimos, se endividam. E vão se somando as perdas àquela inicial, a da sua fertilidade. Mas alguns optam por parar e seguem em frente rumo à elaboração desse luto, pelo filho que nunca chegou a existir. Outros motivos também podem tornar a questão do quando parar mais óbvia, como limitações de saúde. Mas muitos casais não tem motivos tão claros. Por vezes ter opção pode ser um problema também. Para você que está lendo esse texto com a esperança de encontrar uma resposta clara sobre como saber o momento de parar, sentimos em lhe decepcionar. Não sabemos. Mas sabemos que você vai precisar encontrar essa resposta no seu coração. E para isso vai precisar se  perguntar de novo e de novo, vai decidir, depois vai mudar de ideia e assim por diante. Lisa Manterfield, no interessante livro “Life Without Baby”, fala sobre sua experiência pessoal e coloca de maneira delicada os prós e contras que podem nortear essa decisão. Fatores como coisas da sua vida habitual que estão sendo postergadas, o cansaço físico e emocional ao que está sendo submetida, o quanto o estresse está afetando a sua vida, o quanto isso está afetando o seu casamento e outras relações etc. Ela sugere escrever tudo em um papel, para que se possa voltar depois para ler, quando a decisão já não parece tão clara. E pensar em como imagina sua vida dentro de um ano. É evidente que inicialmente surgirá a ideia de que gostaria que filhos estivessem incluídos, mas caso não haja um filho, você imagina o que gostaria de acrescentar à sua vida que nesse momento não consegue porque se sente presa ao ideal de maternidade? E se esse exercício for muito angustiante, por ser muito difícil imaginar um futuro sem filhos nesse momento, você pode voltar ao passado em como era sua vida antes de tentar engravidar. O que você gostava de fazer que ficou perdido no meio do turbilhão que você está vivendo? Talvez esse exercício traga um alívio, ao pensar em obter satisfação através de outras realizações, mas talvez doa muito pensar nisso e indique que você ainda não está pronta para essa decisão. Cada casal passará por esse questionamento diversas vezes. Mas algum dia algo fará com que a decisão seja tomada, o que permite que esse luto comece a ser elaborado. E uma nova fase, de reconstrução, seja iniciada.

            O tratamento para engravidar é tão intenso que, por vezes, você se afasta do real motivo pelo qual está se submetendo a ele. Passa a ser uma necessidade de ter sucesso. Já não se trata necessariamente de viver uma vida com ou sem filhos, mas de voltar a ser uma pessoa que pertence ao mundo “normal”. É muito diferente dos casais que optaram por não ter filhos, isso é uma opção, não uma impossibilidade, não há uma menos-valia associada. Então é fácil prosseguir com os tratamentos sem questionar, parece ser o caminho natural.

            Os caminhos a se percorrer a partir daí são essencialmente três: viver sem filhos, adoção ou doação de gametas/embriões. Cada casal sentirá cada uma dessas possibilidades de maneira diferente e chegará a elas em um momento diferente. Por vezes o próprio casal diverge entre o que fazer. E esse é mais um dos momentos críticos. Fazer algumas pausas entre uma estimulação e outra podem ajudar a assentar a poeira e ver as coisas mais claramente, mas como é difícil esperar mais meses para ter a definição se você vai ser uma “sem-filho” ou “com-filho”…

            E se você chegou a esse ponto do tratamento, certamente vive o luto pela infertilidade, mesmo que não tenha parado para pensar que se trata de um luto. É um luto não reconhecido, silencioso, difícil de dividir com alguém pois talvez poucos compreendam que você sinta tanto a perda de alguém que nunca existiu. Mas existiu no seu coração. Aceitar e elaborar esse luto é necessário para seguir em frente, qualquer que seja a escolha do casal.

  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANTERFIELD L. Life Without Baby: Surviving And Thriving When Motherhood Doesn’t Happen, 1st ed. Redondo Beach: Steel Rose Press, 2015.

Texto: Psiquiatra – Dra. Simone Maria de Santa Rita Soares

Você pode se ajudar. E ajudar os outros a te ajudarem.

No Brasil, cerca de 8 milhões de pessoas têm problema para engravidar naturalmente; no mundo, são 80 milhões de pessoas. Esses altos números fazem crer, que muito se sabe e se fala sobre infertilidade e toda a crise que ela gera aos indivíduos afetados. Ledo engano: sabe-se e fala-se, para quem pesquisa, sobre dados estatísticos, causas, tratamentos e opções alternativas para os que não obtiveram sucesso com os tratamentos propostos. No entanto, o impacto social, familiar, financeiro, espiritual, físico e psicológico na vida do casal é bem menos reconhecido e considerado. Lamentavelmente, a desinformação cria importantes lacunas na rede de apoio emocional que a família, amigos e até mesmo profissionais da saúde poderiam fornecer aos que atravessam essa dificuldade e sofrimento.

A infertilidade é, para os que sonham gerar um filho – como expressão de todo amor e potência própria e instintiva – uma sentença que aniquila toda a possibilidade; é o fim de um grande sentido de vida, é a perda de um tudo que nem se chega a ter. É um luto. E como tal, doloroso demais. Solitário demais. E incompreendido.

Do momento do diagnóstico até a decisão de iniciar o tratamento, passar por ele, até o de interromper, o casal vivencia um extenuante processo que implica num desgaste físico, mental e econômico. Tudo investido na realização do maior projeto da vida deles. E a cada mês, eles, novamente, esperam, desejam e acreditam que agora tenha dado tudo certo. Mas a menstruação, aquela que já foi sinal de promessa, vêm trazendo frustração, impotência e dor ao casal. E à mulher, que protagoniza a cena do papel vermelho, cabe o horror, a vergonha e a culpa de quem agora se sente seca.

Durante essa longa e dura jornada, a maioria das pessoas não sabe como ajudar, não sabe o que dizer, e menos ainda o que não dizer… Já ouvi mulheres dizerem sobre o quanto é irritante e como se sentem desrespeitadas ouvir consolos e conselhos do tipo: “Ah, mas vocês podem adotar “, “Relaxa, quando vocês esquecerem, engravidam“, “Veja o lado bom: vocês vão poder viajar despreocupados, dormir sem ter hora para acordar “. Há ainda os que, com boa intenção, recorrem à sabedoria da Natureza ou Divina com “Deus sabe o que faz; talvez não era pra ser “. Mesmo que tudo seja verdadeiro, para o casal, por mais resignado que sejam, enquanto se está vivendo o processo, qualquer comentário parecido é cruel, e agride mais do que conforta.

O fato é que mencionar a possibilidade de adoção, compete aos muito íntimos que sabem quando lançar a ideia e a melhor maneira de fazê-lo; normalmente, o casal considera essa possibilidade depois que atravessou o luto pela perda do filho biológico. Também a crença no “relaxamento” e no “esquecimento” não deve ser mencionada porque a infertilidade é um problema médico e tais comentários geram mais estresse, e as mulheres tendem a sentir que estão fazendo algo errado quando, de fato, a chance maior é de que o problema seja físico. Carro grande, malas, fraldas, birras e chupetas não parecem um desprazer para o casal que sonha, desesperadamente, poder viajar com os filhos. Nem tampouco a visão de si mesmos com sono e olheiras; visão esta que logo é substituída pela deliciosa imagem do ninho de mafagáfos. Os comentários religiosos parecem ser os mais cruéis e os mais mal recebidos porque insinuam que Deus “me fez infértil porque eu não saberia ser boa mãe”. E o debate sobre o aborto está aí para provar esta inverdade.

Bom, se tudo isso lhe parece familiar, você provavelmente sente na pele todo mal estar que advém do não saber do outro sobre como te ajudar, acrescido ao seu sofrimento. O fato das pessoas ao seu entorno, que certamente sentem e lamentam seu infortúnio, não saberem te ajudar da maneira que você precisa, não significa que você não possa pedir e até mesmo ensiná-las. Para tanto, se faz necessário que você reconheça sua dor, suas necessidades, seu luto, e que busque o espaço seguro da terapia para que possa dar voz, livre e espontaneamente, a toda fala e grito silenciado. Estando em processo, você se sentirá mais segura e à vontade para escolher um ou dois membros da sua família, assim como amigas mais próximas, para compartilhar sua experiencia e pedir a cada uma a ajuda que você precisa da maneira que você espera. É preciso que haja uma comunicação aberta. Dentro de um sistema familiar, a vivência da infertilidade por um de seus membros pode tanto prejudicar as interações por causa da proibição velada de se falar sobre, por causa do distanciamento e evitação, como pode fortalecer os vínculos e promover bem estar e crescimento para todos. Quando a família e os amigos encontram espaço para serem ajuda, conseguem superar a própria dificuldade de serem testemunhas do seu drama e sofrimento e se revelam suportivos, compreensivos e disponíveis para estar com você da maneira carinhosa e respeitosa que você precisa e merece.

Portanto, se pegue no colo. E ensina aos que se importam, como e onde você gosta de cafuné.

Texto: Psicóloga – Hélia Regina Caixeta – @heliapsi

A infertilidade na contemporaneidade

Um casal, quando deseja ter filhos, não imagina enfrentar grandes dificuldades. Muito menos receber o diagnóstico da infertilidade. Porém, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, entre 10 e 15% dos casais são considerados inférteis (doença que afeta o aparelho reprodutor masculino e feminino e tem por causas diversas questões físicas).

Em sua grande maioria, viver a experiência da infertilidade parece trazer significativos prejuízos para a vida de um casal: procedimentos invasivos, ausência de diagnóstico, tratamentos com diversos especialistas, incontáveis expectativas frustradas e normalmente longos anos de espera. Muitas vezes a relação do casal parece ficar bastante prejudicada, com as relações sexuais programadas que com o tempo e a frustração dos resultados vão perdendo o prazer e a espontaneidade. O sentimento de culpa que avassala normalmente o indivíduo que carrega a doença, a sensação de inferioridade social e a dificuldade para lidar com essa questão entre familiares e amigos que cobram a gravidez. Tudo isso acontecendo durante anos, além de prejudicar a relação entre os parceiros, e a cada um de maneira singular, afeta também as relações sociais, onde os casais acabam se isolando para evitar serem confrontados sobre este assunto. Muitas vezes nem as próprias famílias sabem da realidade. Enquanto sociedade, falhamos em não discutir abertamente sobre a infertilidade ou os abortos espontâneos.

Nenhum casal se prepara para lidar com isso. Muito pelo contrário, acredita que, ao iniciar este projeto, tudo se dará como o “normalmente conhecido”. Digo normalmente conhecido em aspas pois a realidade não é bem assim, não existe uma forma única, um único caminho, mas infelizmente vivemos em uma sociedade que de forma moralista dita os processos da experiência humana tratando de criticar qualquer situação da vida que aconteça fora deste roteiro. Não raro escuto em meu consultório “se rezar mais você engravida” ou “relaxa que você engravida”. A infertilidade é definitivamente uma doença, porém o seu tratamento ainda é visto por parte da sociedade com significativo preconceito e tabu. Felizmente, a Medicina vem ampliando esforços no setor de reprodução humana assistida, ofertando aos casais diversas possibilidades de tratamento para o tão sonhado desejo da maternidade e paternidade. Além de maior diálogo social sobre este relevante tema, se faz necessário para um casal que vivencie a infertilidade o acompanhamento psicológico que vai possibilitar um acolhimento as angustias, o enfrentamento das questões singulares, fortalecimento e ressignificantes importantes em torno do feminino e masculino, da maternidade e paternidade e sobre as demais infinitas questões que acompanham cada indivíduo nessa experiência. Tenho acompanhado diversos pacientes em tratamento para reprodução humana e certamente posso afirmar que o isolamento não agrega, muito pelo contrário, prejudica muito.

Texto: Psicóloga – Ellen Priscila L. Cortez Correa – @psicologa_ellencortezpsi

Desafios cotidianos – os outros, as situações, o dia-a-dia

“Nós somos, em nosso mundo real e cotidiano, muitas vezes semelhantes as máscaras da Comédia e da Tragédia, rindo por fora, uma careta de dor por dentro.” Stephen King

De repente um convite inesperado, uma pergunta indiscreta e uma notícia de alguém próximo nos faz repensar o quão difícil é lidar com o cotidiano. Desafio diário de quem se encontra com o diagnóstico de infertilidade, onde o simples se torna em algo temido. Conversar sobre a gestação de alguém, ir a um chá de bebê, ser questionada se tem filhos ou quando pretende tê-los, gera um misto de sensações que passam do constrangimento a raiva, e oscila entre a alegria e a tristeza e porque não dizer uma certa “inveja” de não ser você.

Como estar, se quando o que você quer é fugir dos encontros, das perguntas das quais não se quer responder. O que pode gerar muitas vezes um isolamento social, um afastamento de todas as pessoas, inclusive de sua família, pois não se sente compreendida e respeitada em sua dor, em seu luto; e esse não reconhecimento se manifesta em solidão, o que a deixa mais vulnerável a qualquer possibilidade de troca e pode fazer com que, com isso, se perca amizades, eventos e celebrações que a vida tem a oferecer.

O luto na infertilidade é negado por todos, e principalmente por quem o vive, num esforço intrapsíquico para não reconhecer abertamente seu sofrimento, envolve perdas múltiplas que vão desde a perda de um grande sonho que reforça sua identidade, à perda da possibilidade de perpetuação da própria existência.

E o que fazer? Como cuidar dessa situação?

Não existe uma solução mágica!

A palavra é reconhecer. Reconhecer a dor que devasta por dentro e inibi todas as ações externas que podemos expressar tornando-as, muitas vezes, mecânicas/automáticas numa fantasia de que assim possam ser amenizadas ou não sentidas.

Reconhecer seu luto como algo a ser vivido e não escondido e sufocado dentro de si. Validar seu sofrimento, sua própria dor. O reconhecimento faz com que consigamos nos olhar com maior compaixão e nos permite a sentir. Quando não se lida com sua dor e tenta encontrar seu lugar no mundo, sair da cama todas as manhãs e encarar o dia pode parecer um desafio monumental, tudo se tornar uma ameaça.

Para que exista uma mudança no todo é preciso começar onde é o ponto de partida, onde respeita-se a própria dificuldade, tudo nem sempre será mil maravilhas, mas terá maior tranquilidade e qualidade nas relações existentes ou que possam vir a existir. Conseguirá encontrar soluções mais certas daquilo que realmente deseja, como saber o momento que deve manter o distanciamento de tudo e quando poderá se aventurar a participar dos eventos e encontros sem um sofrimento tão grande.

Texto: Psicóloga Eliane Souza F. Silva – @elianesouza.psi

Vamos dar nome as coisas: você está passando por um processo de luto.

Muito se fala do luto pela morte de alguém mas pouco se fala dos chamados “lutos não-reconhecidos” perpetuando assim seu lugar de não reconhecimento!

A gente se enluta pelas nossas perdas do caminho. E você que está me lendo agora provavelmente está enlutada por ter perdido a chance de exercer uma maternidade que você esperava viver. Por ter perdido a chance de viver o gerar um filho e a maternidade.

Lutos são processos difíceis, cheios de emoções diversas, como tristeza, raiva, apatia ou saudade – inclusive do que poderia/deveria ter sido e não foi. Tem momentos que dá inveja de quem tem o que perdemos. Tem momentos que dá angústia por não entender as razões de não termos. Tem momentos de se deparar com a impotência de não poder fazer mais nada sobre o tema, do não-controle sobre os aspectos biológicos e genéticos do nosso corpo, de sua aderência limitada ou não aderência aos procedimentos. Existe a tristeza da frustração, a raiva diante dos fatos, a falta de perspectiva para seguir em frente e invasão dos pensamentos sobre como era para tudo ter sido. E no meio de tudo isso existem momentos da vida que ficamos alegres, que nos apaixonamos, que progredimos no trabalho, que rimos com nossos amigos, que fazemos uma boa viagem ou comemos uma boa comida… Existe dor, mas também existe prazer. Existe ausência mas também existe vida, a nossa vida.

Não, você não está enlouquecendo. Não, você não está oscilando de humor. Você está vivendo um processo que tem nome: luto. E que se orienta como um pêndulo – horas muito conectado com os sentimentos da perda e horas muito conectado com o sentimento da vida que prossegue, horas conectada com o fato de ser uma árvore que não deu frutos mas também horas conectada com a beleza de ser uma árvore que ainda assim dá flor.

Luto é um processo, cheio de dias, uns mais fáceis, outros mais difíceis, uns com mais sentido e outros que parecem absolutamente sem perspectiva. Ele não passa de uma hora pra outra ou como um passe de mágica. De fato, vamos ter que viver as nossas mortes, reais ou simbólicas. De fato, é possível que vejamos nossas folhas caírem, nossos galhos balançarem ao vento da tempestade e choremos em cima de nossas raízes – mas também é possível que com essa mesma água e essa renovação possamos dar flor. Dar flor é perceber que ainda somos capazes de beleza, que ainda há perfume, que ainda se aproximam os pássaros atrás do pólen. Dar flor são os dias que ainda são bons, que ainda nos abraçam, que há quem cuide e escute nossa dor.

Adélia Prado diz em um poema: “Deus de vez em quando me tira a poesia, olho para a pedra e só vejo pedra mesmo”. Para esses dias de só ver mesmo pedra e para os de dar flor, estamos aqui como um espaço para você falar dessa dor que sente, dessa perda que você viveu e que tem nome: o seu luto. “Lutemos” juntas com ele.

Texto: Psicóloga – Juliana Correia – @psi.julianacorreia